Thursday, May 30, 2013

New Orleans - A cidade do caos controlado

‘there is a brewery right next to this corner that sell cheap beer and is running out of business in two weeks’
‘what?’
‘yeah! Something must be very wrong to run out of business in New Orleans, when you sell beer’

Depois do peso emocional que a Highway 61 teve em nos e da solidao que se sente quando se passa uma tarde em algunas daquelas vilas, New Orleans e o local ideal para exorcizar as magoas alheias que se penduram em nos como dentes de leao.

Chegamos numa quinta-feira ao inicio da tarde e fomos recebidos por uma chuva intensa e ruidosa, embora mais intermitente do que propriamente persistente. Apos termos entregue o carro que tinhamos alugado para descer a H61, instalamo-nos no hostel mais barato e rumamos ao French Quarter, na zona downtown da cidade. A soberba luz de final de tarde, conjugada com uma amena temperatura tornaram um simples passeio a pe em mais um momento a recordar, apenas e so pela cor que o ceu, as casas e ate o asfalto tinham naquele momento. Com uma arquitetura Espanhola, apesar de se designar French Quarter, a zona ribeirinha de NO assemelha-se imenso a uma realidade mais sul americana, como por exemplo, Buenos Aires. O facto de o Louisiana ter pertencido aos Estados Unidos Mexicanos (o ainda nome oficial do país que conhecemos como Mexico) e tambem a sua proximidade com o Oceano Atlantico que a tornou num importante porto para o mercado dos escravos, tiveram como consequencia uma multiplicidade de influencias tal que a torna distinta de todas as outras grandes cidades americanas que visitamos. Seria injusto colocar todas as metropoles no mesmo saco, mas em todas existem alguns tracos comuns. No caso de New Orleans, esses tracos esbatem-se ao ponto de que, se se falasse outra lingua nesta cidade, seria algo que ate fazia sentido.

Carregando o legado de ter sido a culpada pelo nascimento do jazz, as suas ruas sao compostas por todo o tipo de pessoas que vai desde o entertainer na esquina (como nos), ao comerciante ambulante, passando por personagens que parecem fazer de dandy o seu oficio. Tiramos dois días para passear pelas principais ruas e zonas de NO, como o French Quarter, a Magazine Street, a Frenchman Street, Canal Street, Loyola Ave., Jackson Sq. e Lafayette Sq., aproveitando sempre para ir entrando em lojas e livrarias que nos iam parecendo interessantes, assim como, entrando em alguns locais para asistir a alguns concertos que comecavam ainda a tarde era uma crianca.

No sabado, passamos toda a tarde no Jazz Fest. Apesar de um titulo catalogado com um estilo de música, este festival continha uma dezena de palcos e artistas para todos os gostos. Se num palco estava a atuar a banda de rock Fleetwood Mac, apenas a algunas centenas de metros para a esquerda era possivel assistir-se a um concerto de cantos indígenas. Neste festival, que tem a característica interesante de comecar as 10h da manha e acabar as 9h da noite, vimos varias bandas, entre elas os ditos Fleetwood Mac. Tentando perfurar a maior multidao que alguma vez vi, perdi o Formiga algures na confusao. Como mocos precautos que somos (e conhecedores das nossas características pessoais) reencontramo-nos no final do festival, num local que tinhamos previamente definido, caso nos perdessemos. Enquanto o Formiga preferiu ver Stanley Clarke e Frank Ocean, eu permaneci sempre no fraco e pouco convincente concerto de Fleetwood Mac.
Com um amargo de boca e uma dor nas costas de carregar uma mochila algo pesada (ha coisas que uma pessoa nunca aprende!) saimos do festival em direcao a Frenchman Street para irmos assistir a boa música ao vivo. E impressionante como saimos de locais como Memphis, Nashville, Clarksdale ou Vicksburg e vamos a um festival mundialmente conhecido, para testemunhar concertos em que a qualidade técnica e o nivel de entrega dos músicos e, significativamente, mais baixo.

Iamos no segundo ou terceiro concerto dessa noite na Frenchman Street quando vejo o Formiga a dar um abraco a uma rapariga. Nos tinhamos estado tres ou quatro noites com tres estrangeiros em Memphis (uma Alema, uma Australiana e um Ingles) e a Karol (Alema) tinha-nos reencontrado por obra do acaso. Rapidamente, ela levou-nos ate a Felicity (Australiana) que esperava o Pete (Ingles) num bar. E comum os viajantes solitarios irem fazendo trechos da sua rota com pessoas que vao encontrando nos hostels e que tem o mesmo estado de espirito. Estes tres partiram sozinhos, conheceram-se em Nashville e estiveram tres semanas a viajar juntos.

Ao chegarmos a porta do bar, realizamos que teriamos de pagar entrada, algo que nos desmotivou, em conjunto com os ‘abrir de boca’ atraves dos quais dialogavamos com Joao Pestana. Com pouca vontade e com a cabeca no busking que ja tinhamos combinado para a manha do dia seguinte, lancamos uma moeda ao ar para decidir se iamos entrar ou nao. A moeda deu uma resposta negativa a continuacao da noite (e positiva a nossa vontade inicial), mas no segundo seguinte iniciamos um dialogo, no qual os dois defendiam que estavamos em New Orleans, era sábado a noite e iamos para a caminha! ‘F*ck it! We go with you Karol’. Ja la dentro e apos duas cervejas, percebemos que o Bourbon custava 4 US$, enquanto a cerveja custava 3 US$. O que se seguiu foi um festival de Bourbons, ao som de uma banda extensa, com muitos elementos de sopro e com uma vocalista sexy, de voz rouca a incendiar a imaginacao dos varios homens presentes. Nao tenho tantas memorias dessa noite quanto gostaria, mas foi-me contado que, quando o taxista parou em frente ao nosso hostel e ao deparar-se com o cenario de ver o Formiga ja fora do carro a caminhar em direcao a casa, lhe perguntou: ‘Hey, won’t you gonna take the guy on the backseat?’, ao que o Formiga responde apos gritar uma onomatopeia daquelas que ele utiliza quando se esquece de algo e que aperfeicoou ao longo de tantos anos ‘Sorry man! I forgot him’. Obrigado hein Formiga! Valeu!

Nos tres días seguintes fizemos busking no French Quarter e colecionamos estorias caricatas que contarei num próximo post. New Orleans foi, sem duvida, a cidade com o melhor vibe  para se fazer busking desta viagem. Por outro lado, foi tambem o local com mais competicao. Todos os días, o French Quarter e invadido por centenas de buskers que elevam esta cidade ao estatuto de capital mundial do busking, designacao que divide com Paris. Entre magicos, dancarinos, músicos e oficios que nao sei bem como descrever, as ruas de New Orleans foram ja alvo de varios documentarios e livros. Alguns destes buskers sao mundialmente conhecidos, como o grupo de ginastas ‘Blue Man’,  o invisual que toca harmonica no classico ‘Stand by me’ da inciativa Playing For Change e o percurssionista incrivelmente rapido que toca na Bourbon Street, num balde virado ao contrario. Este ultimo foi a estrela de um video que se tornou viral na era pre-youtube.

Mas New Orleans e muito mais!
New Orleans tem cores, humidade e uma selva a desabrochar em cada canteiro. Antes de ser a cidade de NO, aquele espaco era mais um pedaco da densa selva do sul do Louisiana, com os seus pantanos e respetivos crocodilos. New Orleans e tambem o expoente do Vudu nos EUA e uma terra de bruxas (havendo varios itinerarios noturnos a cobrirem os locais onde ocorreram as estorias mais macabras e onde foram assassinadas as bruxas que governavam NO no plano das energías). New Orleans e tambem a terra dos furacoes. O furacao Katrina ainda esta bem vivo na mente dos locais e os seus estragos ainda sao visiveis em varias zonas. New Orleans e tambem o paraíso dos weirdos, onde o conceito de pessoas esquisita ou ‘fora’ nao existe…
Mas New Orleans e tambem o local com os piores transportes em que tive em toda a minha vida. Ver o eletrico passar, constantemente, cinco vezes na direcao contraria, antes de vir o nosso, chega a parecer uma partida de TV.

Concluia, entao, dizendo que New Orleans e a terra das contas por inteiro! Nao ha meias medidas e uma deducao lógica de algo banal revela-se, a toda a hora, um erro. Pergunto-me o que pensara do mundo um velhote que tenha passado toda a sua vida em New Orleans.

A base para este mood e a razao para que esta cidade contenha elementos tao unicos so pode estar associada a sua arquitetura que se reparte entre influencias Francesas, Espanholas e Americanas.
Um dia, em conversa com um arquiteto ja reformado, ele referiu-me que o enorme numero de gente deprimida deve-se ao facto de toda a gente viver em predios que sao todos iguais uns aos outros, cada um com 20 apartamentos todos iguais, que contem decoracoes IKEA todas iguais umas as outras. Chegar a casa, apos um dia duro e sentir que nao se esta num sitio único, que foi construido a nossa imagem e, emocionalmente, desgastante. Ele sustentou o seu discurso com varios exemplos, entre os quais o da Grecia Antiga, cujos lideres sempre tiveram muito cuidado com as decoracoes e ornamentacoes dos edificos publicos porque, segundo eles, se os nossos olhos virem coisas bonitas, as nossas emocoes tambem vao ser mais ‘bonitas’.


Obviamente que nao nos sentimos em casa, embora nao tenhamos qualquer duvida sobre a unicidade de New Orleans. E unica, mas nao e para nos! E para os locals que alimentam este caos controlado. As suas emocoes so podem ser bonitas, porque se ha cidade que e inigualavel e irrepetivel no mundo, provavelmente, ela será New Orleans.

Saturday, May 25, 2013

Highway 61 (parte 4) - Vicksburg

Consciente de que foquei muito mais os dois dias em Clarksdale do que o resto do percurso de uma semana rumo a New Orleans pela 61, esta decisao nao e indicativo de que os restantes dias tenham sido medianos, nem tao pouco sem sal. A verdade e que em Clarksdale nos ataram uma corda aos pes e nos penduraram de forma a termos uma perspetiva diferente das terras que acompanham o rio Mississipi, neste Estado. A partir dai, os nossos olhos adaptaram-se, os raciocinios se desembaracaram e os coracoes aqueceram, tornando-nos seres mais preparados para o que iriamos ver a seguir.

Ao descer a Highway 61, notamos que a paisagem nunca se alterou. A medida que iamos percorrendo as 350 milhas entre Clarksdale e New Orleans, a paisagem nao evoluiu nem um pouco, mantendo-se vasta, baixa e em tons esverdeados. Estando desenhada entre vilas que nao mudam ha muitas decadas e campos de algodao que aguardam o branco brotar das flores, a 61 atravessa localidades com populacoes, maioritariamente, negras que se movem devagar e que esbocam facilmente um sorriso. Cada senhor com que nos cruzamos e um ‘how you doin?’ que colecionamos e, caso fossem de carro, era um tradicional levantar de mao que cordialmente nos cumprimentava, embora muitas vezes o olhar nao acompanhasse o gesto. Nao sei se haveria toda uma intencao, ou uma inexistencia de sentimentos nesses gestos, mas os mesmos la contribuiam para que nos fossemos sentindo bem recebidos.

Cruzamos Rosedale, Greenvile e voltamos a ter um ponto alto em Vicksburg. Na cidade que foi palco da batalha mais sangrenta e decisiva da Guerra Civil Norte Americana, frequentamos mais uma juke joint, mas esta de caracteristicas diferentes.

Com o estatuto de unicos brancos no barracao, assistimos ao concerto de uma banda com varios membros que tocavam musicas com uma carga mais religiosa e com um estilo mais proximo do gospel, do que propriamente do blues mississipiano. Apos entrarmos, procuramos um tal de Larry para lhe dar um recado do Richie, senhor branco e muito bem vestido, que nos abordou e com quem tivemos a beber umas cervejas a tarde.

‘Richie Rich from the casinos?’ ripostou Larry Jr, filho de Larry (Larry era o proprietario daquela juke joint).

Num rapido Flashback, lembrei-me de todas as questoes sobre como tinhamos vindo ali parar, se a rota do blues era publicitada em Portugal, por que sitios passamos, quais os que mais gostamos, etc. Tinhamos entao servido de barometro para um empresario que se encontra em fase de diagnostico para fazer crescer o turismo da rota do blues e, consequentemente, aumentar o numero de turistas com dinheiro no bolso para gastar em Vicksburg.
Esta cidade e, claramente, mais desenvolvida do que as restantes que cruzamos na 61. Desde um centro arquitetonicamente bem pensado, a centenas de canteiros bem coloridos, passando pelas caixas de eletricidade que dao musica durante 24 horas por dia (em Nashville, as caixas de eletricidade tambem passavam os hits da musica country), pelos varios murais pintados por artistas e pelas pelas placas explicativas que povoavam os locais, no qual algo se passou de historicamente importante, Vicksburg ja nao se encaixava na mesma categoria do que as vilas dos dias anteriores.

Contudo, nesta juke joint tudo voltou a ser genuino. As conversas faceis, o bater do pe de forma ritmada, o consumo de alcool (licito ou ilicito) e as partilhas pessoais apos a musica cessar e o que de verdadeiramente unico se retira do Estado do Mississipi. Estas noites foram tao diferentes e especiais que voltamos a elas sempre que o assunto entre nos acaba, ou estamos dentro de um autocarro sabendo que o destino do bilhete ainda se encontra a mais de 15 horas.

Vicksburg foi bom, mas nao memoravel. E ingrato para qualquer cidade vir a seguir a Clarksdale.

Para poupar dinheiro, dormimos no carro (foi ai que percebemos que as estupidas caixas de eletricidade dao musica toda a noite e nos obrigaram a mudar o carro de sitio varias vezes) e no dia seguinte visitamos o campo onde decorreu a batalha de Vicksburg. Concluida a visita, fomos comprar mantimentos no minimercado, mais um livro numa pequena livraria cuja proprietaria era fa de Jose Saramago e arrancamos em direcao a New Orleans. 
Ao som da BB King Blues Station e ao sabor de sandes de catfish, deixamos o Mississipi para entrarmos no Louisiana.


Nao fizemos promessas de retorno, embora tenhamos concordado de que estes dias foram os melhores momentos da viagem. A razao? Nao sei… Talvez porquenas nossas cabecas nunca o deixaremos ou talvez porque o sagrado, implica a possibilidade do profano…e profanar o Mississipi esta fora de questao! 

Highway 61 (parte 3) - Ainda na juke joint de Clarksdale

(parte ludica)

‘This guy is dead, this guy is dead, this guy is dead, this guy is also dead and this one is barely alive’ afirmou um senhor branco de cabelos compridos para um negro magrinho enquanto ambos analisavam um poster da banda Sands. Apos tal intervencao, o mesmo senhor soltou um ligeiro sorriso e remata ‘boy! we’re getting old’.

Estavamos finalmente numa juke joint, preparados para ouvir blues, no sitio onde ele nasceu e cresceu.  O local assemelhava-se, como ja referi anteriormente, a um barracao parecido com as sociedades recreativas das aldeias portuguesas, cobertos de posters de estrelas locais de blues. O ambiente era super descontraido e muito amistoso. Pedimos almondegas para jantar (nao tinhamos outra escolha) e o mesmo senhor de cabelos compridos veio oferecer-nos moonlight, bebida alcoolica de fabrico caseiro, illegal nos EUA. Nao me lembro da razao pela qual o fiz, mas recusei a oferta. O Formiga bebeu e comentou que se assemelhava ao bagaco, embora sem a potencia do alcool. O barracao tinha, por esta altura, 15 pessoas.
A hora anunciada, o concerto comecou com um blues muito caracteristico. Entre cada musica, o one man show (tocava guitarra com as maos, percurssao com os pes e ainda cantava) explicava o estilo de blues que tinha tocado, metia-se com os presentes e contava algumas piadas. Foi atraves das suas explicacoes que ficamos a saber que o blues de uma so nota (ex: John Lee Hooker) e da regiao norte do Mississipi, enquanto o blues de tres notas em 12 compassos (ex: BB King) e da regiao sul desse Estado. Num intervalo entre musicas, o musico perguntou: ‘hey guy with a strange name, whats your name again?’, eu respondi ‘Joao’. Ainda que longe, ele tentou ‘Joen?’…e a conversa continuou…
‘that’s close enough’
‘Where are you from?’
‘Portugal’
Neste momento senti uma voz forte, embora calma, a eclodir atras de mim ‘PORTUGAL? Wait a minute!’
Com todo o barracao parado a olhar para nos, ficamos a aguardar enquanto o tal senhor mexia nos seu telemovel. O musico que se encontrava a meio do seu concerto ainda tentou, em vao, prosseguir com o mesmo ‘hey Paul, I’m trying to do a show here. I’m trying to have an intimate moment with the audience Paul’, mas o Paul nao esteve nem ai. Apos o curto hiato, mas que tendo em conta as circunstancias, pareceu uma eternidade, Paul descola os olhos do ecran do telemovel, olha para mim, levanta o seu copo e, a sorrir, grita com felicidade ‘SALUSH!’. Toda a gente na juke joint retorquiu as suas aproximacoes a palavra portuguesa saude, fizemos um brinde e o espetaculo prosseguiu.

Passados mais alguns minutos, com uma aura carregada de star quality, irrompe pela juke joint adentro um senhor alto, de chapeu e camisa com brilhantes, transportando um poster na mao. Estavamos entao na presenca de mais uma personagem que ficara para a posteridade. Nao era nada mais, nada menos que o detentor do Grammy para melhor album de blues de 2008, Watermelon Slim. A lenda mundial do blues tocado em slide guitar, tinha chegado da Nova Zelandia naquele dia e, como manda a tradicao, tinha trazido o poster para colocar nesta juke joint. Apresentou-se a nos num portugues engracado, mas de dificil entendimento, falou em espanhol com uns Argentinos que la estavam e ate tentou o alemao com um casal que tinha acabado de chegar de St. Louis. Feitas as apresentacoes (com o concerto a decorrer) ele foi para a frente do palco dancar com a destreza e desinibicao como se ninguem estivesse a ver.
A presenca de Watermelon Slim na sala era enorme e o musico que estava a atuar interrompeu o seu concerto, para convida-lo a tocar algumas das suas musicas. Fomos entao testemunhas de uma arte verdadeiramente superior e completamente diferente do que tinhamos visto ate entao. A interpretar as suas cancoes como se tudo lhe doesse, mas ja fosse velho demais para se contorcer de dor, a sua voz ziguezagueava entre uma roquidao cavernosa e uma docura de toque leve e sublime. Tocou duas musicas com uma slide guitar (que tinha ido ao carro buscar em 2 minutos) e uma a Cappela, acabando com um solo de uma harmonica que trazia no bolso.
Por esta altura, eu e o Formiga ja tinhamos perdido a conta aos KOs que tinhamos sofrido do blues, mas este bateu como ALI! Foi um momento poderoso ver tal atuacao e partilha-la com menos de 25 pessoas. Watermelon Slim e uma perola e e de Clarksdale. Como todas as perolas deste local, ele nao quer sair de la, segundo nos foi comentado pelo senhor que proferiu as primeiras palavras deste post e que era, afinal, Arthur Crivaro, o proprietario desta juke joint.

Voltou-nos a ser oferecido Moonlight e, desta vez, nao vacilei. Foi a bebida mais doce que alguma vez bebi, escorregando pela garganta como se fosse mel liquido. Nunca iria adivinhar que era uma bebida de elevado teor alcoolico.

O primeiro artista continuou o seu concerto e, nas duas horas seguintes, assistimos ao seu flirt insistente com uma bonita mulher da audiencia, a versoes de Robert Johnson, a blues speedados interpelados por jams com instrumentos de percurssao que alguem da plateia ia esporadicamente tocando e ao apogeu do concerto com toda a gente de pe, a dancar em frente ao pequeno palco com direito a quarto versos improvisados pelo artista do dia e dirigidos especificamente a cada um dos presentes. No meu caso, ele brincou com a dificil pronunciacao do meu nome e, no caso do (Bruno) Formiga, com o filme de Sacha Baron Cohen, chamado 'Bruno'
.
Tudo nesta noite foi divertido! As pessoas, a musica e ate a casa de banho tinha um enorme poster do filme ‘Kramer contra Kramer’ por cima da sanita.

Com o fim do concerto, ficamos a conversa com os presentes, onde nos foi explicada a dinamica especial de Clarksdale. O simpatico Arthur sentou-se connosco e partilhou o seu interessante e repleto passado. Tendo trabalhado como produtor para Frank Zappa (que ele considera como o maior genio com quem trabalhou), para Rolling Stones ou Jimi Hendrix, Arthur contou-nos estorias incriveis como o dia em que disse que nao a uma miuda que estava a tentar colocar a sua banda num festival que ele estava a organizar na Florida. A banda era Jefferson Airplane e a miudinha era a vocalista Grace Slick. Arthur descreveu-nos tambem o momento em que ficou surdo de um ouvido, de forma permanente, numa altura em que trabalhava com os Grateful Dead. Por essa altura, achou que chegava de rock e que Clarksdale era o sitio ideal para passar o resto da sua vida. Nesta vila, Arthur abriu esta juke joint, local que ele apelida como ‘a minha sala de estar’.

Esta noite foi, ate ao momento, a melhor desta viagem!


Nota: tenho pena de nao poder partilhar os videos e as fotos desta noite. As mesmas estao num cartao de memoria que, embora leia as fotos/videos na camara, da erro quando as tento passar para o computador! 

Monday, May 20, 2013

Highway 61 (parte 2) - A verdade de Clarksdale



No Segundo dia em Clarksdale, acordamos e fomos para o centro da vila. Embora ja com alguns carros, o numero de pessoas a andar na rua continuava significativamente baixo para o que seria de esperar numa vila desta dimensao.

Comecamos por visitor o Delta Blues Museum, que nos deu imensa informacao sobre o inicio do blues e o envolvimento de Clarksdale no mesmo. A exposicao temporaria era de Muddy Waters, tendo la sido colocada uma replica da cabana onde o mesmo passou a sua infancia. Algumas das suas cancoes e citacoes mais iconicas, tiveram um profundo impacto nos artistas que vieram a seguir como por exemplo os Rolling Stones, que escolheram este nome devido a uma cancao de Muddy. Tal como milhoes de negros, Muddy Waters saiu do sul dos EUA, no final da sua adolescencia em direcao a Chicago. A hostilidade do sul, por comparacao com a recetividade dos Yankees do norte, gerou um exodo que contribuiu para um repentino aumento de populacao em cidades como Chicago e Detroit. Para quem gosta de blues, este pequeno museu e como uma conversa com um historiador cool da nossa idade (ja que a nocao de cool varia com a idade), que com descricoes sucintas, sustenta muito bem o que apresenta, fazendo uso de muitas declaracoes em discurso direto dos grandes do pelotao.

Apos sairmos do museum, procuramos algo para fazer, mas nao encontramos propriamente nada. O s locais que nao estavam fechados, aparentavam estar e as pessoas nao andavam na rua. Ao inicio da tarde, o transito de carros subiu e rocou o mediano, mas o dos peoes manteve-se sempre baixo. Enquanto vagueavamos, encontramos uma loja de musica bem distinta que tinha uma sala de guitarras e baixos que se assemelhava a um freak show de instrumentos. Quase todas antigas e de marcas que eu desconhecia, entretive-me por uns tempos a experimentar estes instrumentos de sons e tatos tao peculiares. No final dessa tarde, apos termos estado mais um par de horas num banco de jardim entre leituras, guitarradas e fugazes sestas, decidimos procurer um sitio para comer e, embora algo descrentes, ouvir blues. Nem a cinco minutos estavamos a andar pelo passeio quando fomos abordados por um simpatico senhor branco, de chapeu e oculos de sol, com uma longa barba em linha com a sua longa camisa para fora das calcas. Convidou-nos a entrar num local estilo sociedade recreativa para ouvirmos, segundo ele 'um guitarrista estupendo e cheio de estilo'. Apercebemo-nos imediatamente que era ele o guitarrista que ia atuar, certificamo-nos que vendiam comida e aceitamos o convite.
O que se seguir foi uma importante experiencia pessoal e musical. Deixo toda a parte ludica e caricata da mesma para descrever num post seguinte, cinjindo-me agora aos elementos de aspeto social decisivos para a compreensao deste local.

Em conversa com alguns dos presents nesta juke joint, percebemos que o condado de Clarskdale desceu de 21.000 pessoas para 17.000 nos ultimos censos. Se enquanto la estive, me tivessem questionado sobre quantas pessoas teria este condado, eu diria entre 3.000 a 4.000 a julgar pelo que vi (nao cheguei a ver uma centena de pessoas, mas a avaliar pelas casas, seria essa a minha previsao). Das 17.000 que la habitam atualmente, 72% sao negros e a maioria trabalha nas planicies do condado que estao repletas de campos de algodao. Estando a economia local baseada na producao e venda de algodao, a minoria branca ainda prevalece como a classe social com mais poder institucional. Segundo nos foi dito, a producao de algodao assenta ainda em processos manuais, tal como acontecia ha 100 anos, implicando praticamente o mesmo numero de pessoas a fazer o mesmo tipo de trabalho. Esta estagnacao professional tem entao uma correlacao direta com a nao evolucao do funcionamento da sociedade local em Clarksdale. A tao estranha inexistencia de pessoas na rua deve-se a tensao social que impesta o ar da vila. Os brancos vivem, essencialmente, em dois sitios, nomeadamente nas mansoes construidas nos campos de algodao dos quais sao proprietarios, ou no centro da vila (neste caso, apenas uma pequena fatia). Quem vive nas mansoes, nao vem ao centro por causa dos ‘niggers’ e quem vive no centro, sai pouco pelo mesmo motivo. A comunidade negra vive em pequenas casas na periferia que se encontram ensanduichadas, pelo centro e pelos campos de algodao. Esta comunidade tambem nao e adepta do centro da cidade, porque e la que vivem os brancos. Este sensivel jogo de equilibrios e entao a causa de sentir-mos que Clarksdale e um local enigmatico, estranho ate, mas nao sem chama!  Por algum motivo, nao parece uma terriola qualquer sem pessoas, mas sim uma terra peculiar que intriga quem a visita.

Mas estas clivagens nao ficam por aqui!

O proprio centro da cidade tem as suas ruas dividas em duas classes: as ruas dos brancos e as ruas dos ‘niggers’. Um negro nao pode abrir um negocio numa das ruas dos brancos e um branco nao vai as ruas dos negros, a nao ser que seja de passagem. Em conversa com uma indignada professora de ginastica de Clarksdale, que estava a servir na juke joint, ela explicou-me que o exodo que esta vila registou na ultima decada, foi, na sua essencia, de jovens que nao so nao compreendem que uma situacao destas se mantenha, como tambem nao compreendem a aceitacao dos cidadaos mais antigos, especialmente os pertencentes a comunidade negra, desta situacao. Como lutar contra um Sistema pode ser inglorio, especialmente se se estiver sozinho nessa luta, optam por abandonar a vila e deixar Clarksdale intacto no que diz respeito ao seu codigo genetico social.
Como nao ha injustica sem uma ponta de ironia, alguem nesta juke joint me confessou entre suave sorrisos que a crise so nao afetou quem vive no Mississipi, ‘Se vivemos de cupoes? O que significa viver sem cupoes?’

Esta e a verdadeira forca por detras dos blues! Embora sendo um povo sorridente e com imenso humor, eles transportam toda a vida uma magoa que tem curzado geracoes e se prepara para curzar mais uma. Eles ardem por dentro e escoam a sua controlada furia atraves de uma guitarra, dentro de um barracao inutilizavel para trabalho, junto de quem fala a mesma lingua. Despacham cigarros, viram garrafas, viajam no tempo e despedem-se para voltar em breve ao local do crime.  Sim, porque na terra onde nasceu, o blues continua a ser o crime!

Nota 1: A professora de ginastica tambem me confidenciou que teve de criar duas turmas segregadas, porque os pais brancos nao queriam que os seus filhos partilhassem a sala com ‘niggers’.

Nota 2: Dias mais tarde li no livro ‘The Sound and the Furry’ de William Faulkner o que poderia ser uma apurada descricao daquilo que vi em Clarksdale:
‘Because no battle is ever won…they are not even fought. The field only reveals to man his own folly and despair, and victory is an illusion of philosophers and fools’

Nota 3: Sabiam que a escravatura so foi abolida da constituicao do Mississipi em 2012? Devido ao mediatismo provocado pelo filme sobre o presidente A.Lincoln, alguem decidiu investigar e percebeu que, neste Estado, ainda nao restava qualquer afirmacao que proiba a escravatura... 

Wednesday, May 15, 2013

Highway 61 (parte 1) - O berco do blues!


Houve tempos em que tentei perceber a origem de algumas paixoes, mas depois desisti. Nesta viagem, com o tempo que tenho para pensar, decidi voltar a tentar perceber o que me faz gostar tanto de uma determinada coisa, neste caso, blues acustico. Embora confesse que ainda nao tenha materia para emitir um juizo final, reconheco algumas causas ao fundo do tunel.

Ainda com a cabeca em Memphis, mas ja com o coracao pronto para se lancar na estrada em busca da perola sagrada e mae de todos os estilos de musica atuais, chegamos a Clarksdale no Estado do Mississipi. De carro alugado e com um desvio pelo verdejante e solitario norte do sweet home Alabama, entramos no Mississipi para descer a Highway 61. E Highway 61e sinonimo de Clarksdale. Segundo reza a lenda, algures na decada de 20, um jovem adulto e futuro padrinho do blues chamado Robert Johnson dirigiu-se a um cruzamento em Clarksdale carregando a sua guitarra acustica. Nesse cruzamento, a meia noite em ponto, Robert encontrou-se com um gigante homem negro (o diabo) que lhe afinou a guitarra e tocou um par de cancoes, devolvendo depois a guitarra ja enfeiticada. Por troca com a mestria no manejamento da guitarra, Robert Johnson vendia assim a sua alma ao diabo o que lhe implicava ficar a arder para sempre no inferno, apos a sua morte. Esta lenda e reforcada, nao apenas pelo facto de o mesmo ter evoluido na composicao e na execucao de uma forma imediata e absolutamente extraordinaria, mas tambem pelo teor de varias das suas letras. Aos 27 anos, morreria envenenado numa juke joint (este termo designa os concertos organizados em barracoes para audiencias exclusivamente negras) apos ter tentado seduzir a namorada do barman. No seu legado consta apenas um album, muitas versoes das suas musicas pelos mais variados artistas de classe mundial, uma estrela no hall of fame e muitas e enigmaticas estorias sobre a sua vida e, principalmente, sobre a sua morte.

Contando tambem com os genios Son House e Muddy Waters como filhos da terra, Clarksdale e fascinante! mas nao imediato!

Na tarde em que chegamos a Clarksdale era Domingo e queriamos comer algo. Fizemos check-in num motel barato (tinhamos dormido a noite anterior no carro, debaixo de um assutador festival de trovoes, em Tupelo), largamos as coisas e fomos procurar um sitio roots para almocar. Seguindo uma rota em direcao ao centro da vila, fomos comentando a elevada quantidade de cabeleireiros existentes nas ruas mais perifericas e os carros kitados de forma tao estravagante e megalomana que nao encontra paralelo com nenhum outro local onde ja tive. Estranhamos este facto, uma vez que o material automovel e caro (1.000 US dolares por cada jante nas lojas de penhores 'pawn shop') e tambem porque o Mississipi e um dos Estados mais pobres dos EUA. Contudo, o que mais nos causou estranheza foi a nao existencia de pessoas no centro da vila, nem nas principais ruas adjacentes. Tal como um cenario que e dispensado apos a gravacao do filme, esta vila parecia ja nao ter uso. Percorremos todas as suas ruas centrais e nao encontramos nenhum estabelecimento aberto nem vivalma que nos pudesse indicar um local onde comer. Que experiencia estranha! Numa terra onde a idade media e elevadissima e o clima e agradavel, como nao encontramos nenhuma comunidade de velhotes casticos a trocarem, pela centesima vez, as suas estorias de infancia e os feitos dos seus netos? Por outro lado, Clarksdale tinha um aspeto clean e organizado. Alguem tinha que sustentar esta organizacao, certo?

Numa eventualidade, encontramos um local que, embora aparentemente estivesse encerrado, estava aberto. Abastecemo-nos de sandes com mau aspeto e, apos uma vistoria superficial a toda a vila, fomos para o parque principal dormir uma sesta, mais concretamente, em cima do palco onde se organiza o Delta Blues Festivel, devido a longa sombra que a sua cobertura providencia. Restabelecidos, voltamos para o motel onde ficamos ate a noite (exceto uma incursao noturna pela vila para verificar-mos que a unica diferenca para a tarde era no ceu e nao na terra).

O primeiro dia em Clarksdale nao podia ser mais insipido! Esta insipidez transformou-se numa materia misteriosa quando, no dia seguinte, tudo fez sentido, com todas as pecas do puzzle a se conjugarem na perfeicao e a nos exporem uma situcao que nos atinge como uma chapada na cara, como se todas as pessoas que vao a Clarksdale fossem priveligiados 'Mama's Boy' que julgam saber sobre os locais apenas porque sabem como navegar proficuamente num mundo virtual que nos conta tudo o que e preciso saber e tambem o seu oposto...
(continua na segunda parte :P)

Nota: a nossa marioneta chama-se Robert Johnson, devido ao facto de estarmos a ouvir Robert Johnson quando ofereci a marioneta ao Formiga, em agradecimento por ele ter desenrolado o enorme no que se tinha gerado nos fios.

Sunday, May 12, 2013

Unclaimed Baggage

Ja alguma vez pensaram o que acontece a vossa bagagem quando a companhia aerea vos comunica que deconhece o seu paradeiro e afirma que ja nao a vai conseguir recuperar?
Ela e transportada para uma vila pacata, localizada no meio das montanhas do norte do Alabama, cujo nome aparece mal escrito no mapa (aqui tomo a parte pelo todo, ja que no meu mapa aparece mal escrito).
Com uma media diaria de 7000 malas recebidas, o Unclaimed Baggage em Scottsboro e a capital da ladra com requinte. Nuns armazens aquecidos e bem equipados, sao expostos todos os elementos que constam nessas bagagens que nao fugiram as garras do extravio, a precos irrisorios. Por entre roupa de e para todos os estilos, material eletronico, material desportivo, instrumentos musicais, equipamento de campismo e ate livros e colecoes de miniaturas, encontramos alguns itens mais estranhos como, por exemplo, kits de limpeza professional de comboios eletricos. Neste caso em concreto, nao propriamente pela estranheza ou absoluta peculiariedade do objeto, mas sim pela quantidade elevada destes kits que se encontravam dispostos.
Em dia do seu 40® aniversario (nao consigo precisar se era mesmo o 40® ou o 40® tal), eu e o Formiga chegamos pelas 8h30 ao armazem e saimos as 11h e pouco, quando a avalanche de curiosos atingia o seu pico de intensidade, tornando aquele espaco desconfortavel. Devo acrescentar que, embora quase lotado este espaco manteve-se sempre organizado.
A par das pecas para venda, encontravam-se expostos alguns itens que pertenciam ao Unclaimed Baggage Museum com raridades que iam desde instrumentos tribais bastantes valiosos ate estrelas internacionais de cinema. (Isso mesmo, o boneco da personagem principal do filme Labyrinth tambem desaguou neste ironico oceano de pertences sem paradeiro)
Lista de compras:
JP
3 pens 16 GB (6,99 US dollars/cada)
1 card reader (0,99 US dollars)
Formiga
Phones da Philips (3,29 US dollars) “bons e com estilo” segundo o Formiga
Ambos
Maquina fotografica compacta da Sony (15 US dollars) "para as bebeiras em sitios manhosos"

Friday, May 10, 2013

Estorias 2


Na primeira noite que passamos em Memphis, cheguei ao quarto, sentei-me na cama e olhei para o
Formiga. Sentiamo-nos bem! Sentiamo-nos muito bem!

Os culpados por nos terem colocado um sorriso na cara que ainda hoje se manifesta com a lembranca
daquela noite, foram os elementos da banda Dr. Feelgood Pots. Nao porque as suas letras contivessem
comedia, nem pela sua performance apalhacada, mas sim pela sua atitude naïve, relaxada e ate humilde
que mantiveram durante o seu concerto.

Tocando Blues, tal como ditam as regras em Memphis, esta banda era composta por 4 personagens
muito peculiares. O vocalista, armado com um harmonica para cada nota (11 ao todo) dispostas como
se fossem balas num colete e num cinto, atuou sempre com os seus olhos fechados e com o seu corpo
corvado e inquieto, como se procurasse uma parede para se encostar ou se carregasse um objeto
quente nas maos. Nao sei se via melhor naquela condicao de clausura, mas a destreza com que vinha ao
publico com um antigo balde pedir gorjetas enquanto cantava os versos ‘tip tip tip tip tip the band’, era
de fazer inveja ao bartender mais atletico. Ele rodopiava, deslizava e dancava sempre de olhos fechados
e de microfone em punho. Mas nao era a unica personagem peculiar desta estoria.

Durante a primeira musica do concerto, notamos a presenca em palco de uma mulher asiatica de baixa
estatura, com as costas marrecas, que usava um blusao de ganga 3 a 4 numeros acima do seu e um
comprido gorro colorido. Contudo, enquato os restantes membros da banda se empenhavam em tocar
um famoso tema de blues, ela encontrava-se sentada a frente da bateria e compenetrada no seu cigarro. Apenas no final desse tema, esta senhora decidiu pegar num comprido baixo e juntar-se a restante banda para, sem nunca mudar a sua expressao facial, dar uma licao de baixo durante as seguintes horas.

A completar a seccao ritmica dos hilariantes Dr. Feelgood Pots estava um baterista que tocou todo o
concerto com as costas encostadas na parede. De bone enfiado na cabeca, este senhor nunca descolou
as costas da parede fria nem nunca se empolgou com o que estava a tocar. Para abrilhantar a sua
performance, ele tocou a segunda metade do concerto com os olhos fechados, tornando dificil perceber
se estava a ser embalado pelo groove que a banda estava a ter, ou pelo sono natural que se sente
quando a jornada ja vai longa.

Por fim, tinhamos um virtuoso guitarrista de blues a direita do palco. Os seus 70 ou 80 quilogramas
acima do recomendado, faziam a sua guitarra parecer um ukulele levando o Formiga a perguntar-me se
aquele modelo nao era mais pequena que o normal. Era um modelo normalissimo, com as proporcoes
normais de uma guitarra normal! Nao era a guitarra que nao era normal!

Soltamos gargalhadas atras de gargalhas com o repertorio escolhido e com o coolness que esta banda
tem a tocar. Nos os dois, com tres amigos que entretanto fizemos, dancamos ate a ultima nota deste
espetaculo! Sempre que o vocalista dizia ao microfone ‘SCREAM’, eramos nos quem gritava mais alto!

Serao estes os verdadeiros blues? Nao, nao sao! Nunca seriam! Esta banda foi tao e somente um dos
momentos mais coloridos de toda a viagem. Foi um hino ao despretensioismo e a humildade. Uma licao
de que quem corre por gosto, nao sabe o que e isso do cansaco e quem quem ri de olhos fechados, nao
pode nunca estar preocupado com a realidade que o rodeia.

Quem diria que iria ser uma banda de blues que me ia fazer rir a gargalhada?

Nota: Dr Feelgood Pots e uma banda com, pelo menos, tres albuns lancados e a venda nas boas lojas de
discos de blues.

Nota 2: Nas capas dos albuns, o vocalista aparece de olhos abertos.

Saturday, May 4, 2013

Memphis no Mississipi!

Memphis e daqueles sitios que sempre ouvi falar e que sempre soube o que la havia. Tambem sempre li estorias cujo ponto de viragem ou desfecho dramatico ocorreram nas suas ruas. Contudo, nunca soube onde ficava!

Ate poucos dias antes de sair de Nashville em direcao a Memphis, sempre imaginei que esta cidade estivesse localizada no Estado do Mississipi e nao no conservador e campestre Estado do Tennessee. Permitam-me discordar do mapa dos Estados Unidos, mas parece-me muito mais adequado que Memphis se localize no sofrido e misterioso Mississipi. A propria localizacao da cidade, sugere uma tentativa de fuga de um Estado com o qual parece nao se identificar, no que diz respeito as suas crencas e caracteristicas sociais.

O abismo testemunhado logo no primeiro dia na Beale Street, cimentou as bases do meu erroneo julgamento sobre a tutela da cidade que e mae de um turbilhao social e pai de um legado musical, que so encontra paralelo em Nashville, precisamente o outro lado do abismo. Tal como a Broadway em Nashville, a Beale Street e a rua da baixa de Memphis que alberga dezenas de clubes de musica ao vivo, os quais disputam, ombro a ombro (decibel a decibel), a atencao de quem por la passa. A surpresa adveio entao do facto de a mancha branca que calca botas em bico, usa barba, chapeu e cinto de fivela larga, ter sido substituida por uma negra, de cabelo encaracolado e grisalho, menos espalhafatosa e mais melancolica. Foi entao que tivemos o nosso primeiro assalto com o blues e... perdemos por KO!

Enquanto estivemos Memphis, so nao passamos a noite nos clubes de blues uma vez, exclusivamente devido a um rol de contratempos que, embora nao nos tirando o mood, nos dificultaram a logistica.
E que o blues nao cansa! O blues cresce! Do boogie woogie ao acustic blues, passando pelo blues rock, slide guitar blues e ate pisando o calcanhar do country com o bluegrass, desfilaram diante dos nossos olhos, musicos de tecnica e groove inquestionaveis.
Se em Nashville perdi a minha virgindade, em Memphis perdi a minha inocencia!

Mas para quem, como eu, cresceu a ouvir rock, Memphis tambem tem um dicionario de palavras a dizer! Embora composta em Clarksdale, a primeira musica de rock da historia ‘rocket 88’ foi gravada nos Sun Studios por Sam Phillips. Este senhor, que duvidou do talento do seu artista Elvis Presley ate ao momento em que o mesmo passou na radio local e os incessantes telefonemas para o radialista obrigaram-no a passar a mesma musica (‘That’s all right Mama’) mais 14 vezes nas tres horas seguintes, foi tambem quem apadrinhou o Man in Black, o Blues Boy King e um new kid on the block chamado Jerry Lee.
Visitar este pequeno studio, agarrar no microfone do Elvis e ouvir gravacoes onde o mesmo se enganava porque o Carl Perkins estava a fazer-lhe caretas, no preciso local onde aconteceram, tem a sua magia. E uma experiencia muito mais direta e franca do que visitar Gaceland, a casa que Elvis comprou quando tinha 21 anos e que alberga os seus avioes privados e a sua colecao de Cadillacs.

Elvis e Megalomano! Nenhum outro artista tem este estatuto. A versao de Graceland sobre a sua vida e a de um conto de fadas para criancas, bem distante das estorias que o meu pai me contava de que ele era um drogado gordo que, quando se irritava, destruia as televisoes que tinha em casa (referindo-se a sua longa fase decadente, penso eu). Nao obstante, quem tem tal dom, esta perdoado!

Nunca vou esquecer o momento em que ouvi, numa grafonola, Elvis a cantar uma cancao de amor que eu desconhecia, nem a sua versao de Sometinhg dos Beatles que tocou num concerto de beneficiencia no Havai.

Memphis foi assombroso. Foi o sitio que nos fez deixar o busking por algum tipo de respeito ou forca superior de submissao. Foi tambem a explicacao que nos fez clarificar muitas das nossas meias ideias sobre a luta pelos Direitos Civis da Igualdade de racas e de generos travada nos 60’s e 70’s.

Para quem nao gosta de musica, nao vejo motivos muito fortes para se visitar Memphis, exceptuando o Museu dos Direitos Civis edificado no local onde o assassino de Martin Luther King Jr. disparou a espingarda.
Para quem gosta, adora ou venera musica, nao fiquem velhos e doentes sem ca virem! Sera um grande erro nas vossas vidas…

(reflexao barata: Sera que a palavra Music vem da cidade de Memphis? Fazia todo o sentido…)