‘Solidariedade =
horizontal | caridade = vertical’ adaptado de uma longa lenga lenga de Eduardo
Galeano no livro ‘Las venas abiertas de America Latina’
O negativismo que
embalou a nossa viagem de autocarro, fruto do elaborado brinde de Antonio, o
pescador mentiroso de Puerto Escondido (OK! Eu sei que os pescadores sao
mentirosos, mas este era um grande pescador!), dissipou-se com os artilhados*(curiosidade
1) ares de San Cristobal de Las Casas, na velhinha e montanhosa provincia de
Chiapas.
Viajando, sempre
que possivel, de noite para poupar o dinheiro da estadia, chegamos a San
Cristobal (SC) bem cedo. Rapidamente nos instalamos num hostel a 80 pesos (o
equivalente a 5 euros por dia) e fomos fazer a habitual primeira incursao pela
cidade desprovidos de qualquer mapa, recomendacao ou sequer ideia do que nos esperava.
Nem ha cinco minutos estavamos a andar quando chegamos a longa, estreita e
lindissima rua de Guadalupe. De movimiento intenso, mas estranhamente
silenciosa, esta rua conta com varias lojas de tudo um pouco, mas
essencialmente de artesanato chiapaneco e merchandising
da guerrilha local EZLN (Ejército Zapatista de Liberación Nacional) cuja da figura de proa, o
subcomandante Marcus, e a mais brilhante das varias estrelas deste movimento.
Apos os 50 primeiros metros desta rua, percebi que o prognostico de estadia
para tres dias era irreal e refleti sobre a justica dos astros. Quando o
Universo nos brinda com algo negativo, logo trata de nos massajar a barriga com
maos de veludo. Neste caso muito concreto, as maos talvez tivessem pulsos que
ostentassem pulseiras do mais fino ambar, produto que abunda naquela regiao e
cuja extracao e um ator determinante na economia local.
Fazendo a ja típica breve
descricao geográfica do local, SC esta situada num vale completamente rodeado
de montanhas e vulcoes, cujas encostas sao ocupadas por pequenos povos
indígenas. Nas mesmas, encontram-se as igrejas de Guadalupe, cuja longa
escadaria de acesso e precisamente onde a central rua de Guadalupe comeca, e do
Cerro, localizada na montanha do lado oposto como se se duas claques rivais se
tratasse. A paisagem que se pode vislumbrar de ambas e fantástica, fazendo
lembrar uma Cidade do Mexico em miniatura, devido a toda a sua perferia
montanhosa, na qual a arquitetura castanha e verde de Deus ainda e o traco que
prevalece.
Regressando ao prmeiro dia, algo de muito relevante aconteceu e que acabaria por marcar
a nossa estadia em SC. Com os banhos tomados e com as mochilas ja meio vazias
ao fundo das nossas camas, saimos para jantar e beber um par de gasosas. Quando
ja nos encontravamos a fazer o caminho de regresso, eu parei subitamente ao
identificar uma musica de Violent Femmes (banda americana) que se escapava
pelas entreabertas portas de um bar que parecia estar a fechar. A medo, dado o
avancar da hora e o aspeto de pre-clausura, entrei no ‘La Sandunga’ e perguntei
se ainda serviam. Uma senhora alta, speedada e de rastas ate ao rabo respondeu que sim e fez o
favor de nos servir. Sentados ao balcao, eu cantarolava as cancoes de Violent
Femmes enquanto a senhora, que entretanto nos revelou ser originaria da regiao Italiana de Liguria (tal como o simpatico Matias de Puerto Escondido), nos
interpelava constantemente com questoes e curiosidades. Com o decorrer da
noite, o gelo foi derretendo e ao toque de uma cerveja oferecida, mostrou-nos
as cancoes da banda da qual e manager e que se
encontrava, naquele momento, no Corona Music Fest em Guadalajara. Acabamos essa
noite na boite ‘Madre Tierra’ a testemunhar o quao mal, eu e o Formiga,
dancamos salsa.
Ja parcialmente descrita, esta Italiana que se apaixonou por San Cristobal enquato viajava e que decidiu la
voltar para viver o resto dos seus dias, chama-se Marirosa e assumiu o papel de
nossa matriarca, apresentando-nos a imensa gente e proporcionando-nos uma ampla
variedade de experiencias que de outra forma teriam sido impensaveis.
No segundo dia, voltamos a
passear pela surpreendentemente grande cidade de SC, tendo descontraido os
cansados corpos num comedor de rua com uns deliciosos tacos. A primeira cerveja
da noite foi no elegante bar ‘Entropia’. A simpatica proprietaria Meixueira, de
descendencia galega, tambem foi lesta no que toca a nos integrar na tao
simpatica clientela do seu bar. Ao som de Chico Cesar, despedimo-nos e seguimos
para o ‘La Sandunga’, onde fomos, novamente, muito bem recebidos pela Marirosa
e a sua seria, mas extremamente competente empregada Gina. Decidi entao, apos
conferenciar com o diabo em cima do ombro esquerdo, assumir o controlo da
playlist do bar, papel esse que correu de tal forma que fiquei retido o resto
da noite junto ao PC, sendo apenas interrompido para dar abracos ou apertos de
mao pela escolha das musicas. Essa noite prosseguiu sob um clima de reencontro
de amigos de escola que nao se veem ha dez anos e acabou ja o sol anunciava que
chegavamos a meio do dia.
Depois de um domingo de vista
embaciada e de pernas latejantes, a segunda-feira deu o pontape de saida para a
semana mais emotiva da viagem ate entao. Sem qualquer ordem cronologica ou de
preferencia, nesta semana fomos as montanhas atuar para meninos indigenas que
nunca tinham visto uma marioneta, atuamos uma noite inteira no ‘La Sandunga’,
passamos um dia na casa que Marirosa possui nas montanhas e visitamos o pequeno
mas util museu da cidade de SC. Nele percebemos, nao apenas as dificuldades de
escoamento de agua na epoca das chuvas, devido as suas condicoes geograficas
desvantajosas, mas tambem curiosidades culturais como o facto desta cidade ter
nove santos padroeiros ou de ter sido o palco da primeira fotografia da
historia, na altura impressa num papel vegetal que teve a duracao de 15 dias.
Nesta semana fomos tambem ao
Canon del Sumidero, rio cujas margens sao compostas por escarpas,
assemelhando-se vagamente ao Grand Canyon de Arizona. Este sitio e um dos
locais mais importantes da historia de Chiapas, simbolizando a resistencia dos
indios aos invasores Espanhois que os tentavam conquistar. Segundo reza a
lenda, na escarpa mais alta deste canhao, os indios das montanhas de Chiapas,
realizaram um suicidio coletivo ao atirarem-se todos ao mesmo tempo, revoltados
por estarem a ser forcados a abdicar dos seus principios e costumes. Ainda
hoje, a bandeira de Chiapas tem, como imagem de fundo, o Canon del Sumidero.
Por entre os dias preenchidos
desta semana, visitamos tambem dois povos indigenas, San Juan Chamula e
Zinacantan, tendo sido possivel assistir a fabricacao manual de artesanato
local, a tecelagem de lindissimos trajes e aos seus costumes religiosos que
persistentemente mantiveram ao longo de varios seculos. Sublinhe-se que a
igreja de San Juan Chamula e local de pratica de duas religioes diferentes no
mesmo espaco. Coisa pouco comum neste mundo!
No ultimo fim de semana em SC,
fomos a uma cantina local onde almocamos junto de taxistas, sapateiros,
artesaos, carteiros e todos os casticos de SC, embalados por musica rancheira,
cerveja barata e comida (mais ou menos) boa, barata e bela. O nosso tour
noturno voltou a ter uma incursao pelo ja habitual ‘La Sandunga’ para a ver a
banda gerida por Marirosa atuar. Apos o seu concerto ainda toquei tres ou
quatro musicas a pedido de Mari para dar um gostinho de Bossanova aos
presentes. O resto dessa noite voltou a ser de gaudio e a terminar ja depois da
hora de almoco.
Tentamos abandonar San Cristobal
de las Casas na segunda-feira seguinte, mas San Cristobal de las Casas nao nos queria
abandonar! Os nove santos devem ter abencoado a manifestacao de professores que
se realizou, pois a adesao foi tal que bloquearam as saidas dos autocarros da
estacao. Em boa hora o fizeram, uma vez que apos um dia bem relaxado em SC,
tivemos um jantar maravilhoso no restaurante do Ale, um dos muitos
conhecimentos que fizemos no ‘La Sandunga’.
Para alem de Marirosa, pessoas
como a acessivel Gina (que com o tempo baixou a guarda e se revelou uma
simpatia), a sempre disponivel Mercedes, a desvairada Meixueira, o sobrio pinguim
(alcunha, como e obvio), o sorridente e generoso Ale e o acessivel Carlos,
farao sempre parte do nosso conto de fadas mexicano!
Pela primeira vez, em toda a
viagem, senti-me em casa. Admito que tal sentimento possa ser falacioso, mas
confesso que ser cumprimentado a toda a hora na rua, nos faz sentir integrados
e que aquele legado tambem pode ser nosso a troco de muito pouco.
Nunca, mas nunca esqueceremos
estes dias em San Cristobal de las Casas!
Curiosidades (vale a pena ler J)
1 – San Cristobal de las Casas
esta sentada em cima de uma bacia de uranio a 2200 metros de altitude. Como o
uranio evapora-se atraves da terra, a populacao inala um composto quimico andando,
permanentemente, ‘pedrada’. Esta e a razao cientifica, muito curiosa, que ajuda
a explicar a tao grande simpatia e generosidade dos seus traseuntes.
2 – E nas montanhas de Chiapas
que ainda permanecem os Zapatistas, exercito de guerrilha que organizaram a
revolucao de 1994, com a invasao a San Cristobal de las Casas. Zelando pelos
Direitos dos indigenas e incrivelmente eloquentes, o EZLN (Ejército Zapatista
de Liberación Nacional) ainda se mantem ativos e bem organizados.
O documentario ‘a place called
Chiapas’ e uma otima fonte de informacao sobre este movimento.
3 – Em SC tentamos o busking por duas vezes! Na primeira vez fomos
interrompidos ao fim de quatro musicas, quando tinhamos uma plateia de 30 a 40 pessoas,
devido ao facto de nao sermos possuidores da licenca necessaria. Plenamente
conformados com esta situacao, fomos no dia seguinte submeter-nos a todos os
processos burocraticos para a obtencao da mesma. Enquanto esperavamos pela a
assinatura da Diretora da Casa da Cultura de San Cristobal, fomos ensaiar
relaxadamente para o jardim em frente. Neste ensaio de apenas duas musicas,
captamos a atencao de uma familia de Guadalajara que depositou na mala da
guitarra, dinheiro suficiente para todas as refeicoes de ambos naquele dia.
No dia seguinte, ja na posse da
licenca, fomos abordados pelo mesmo guarda que defendeu que necessitavamos de
mais uma copia da licenca. Claramente a procura de extorquir dinheiro,
gritei-lhe ‘NAO!’ junto ao seu nariz, coloquei, violentamente, a guitarra na
mala e virei-lhe costas...va enganar os seus...
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