Monday, May 20, 2013

Highway 61 (parte 2) - A verdade de Clarksdale



No Segundo dia em Clarksdale, acordamos e fomos para o centro da vila. Embora ja com alguns carros, o numero de pessoas a andar na rua continuava significativamente baixo para o que seria de esperar numa vila desta dimensao.

Comecamos por visitor o Delta Blues Museum, que nos deu imensa informacao sobre o inicio do blues e o envolvimento de Clarksdale no mesmo. A exposicao temporaria era de Muddy Waters, tendo la sido colocada uma replica da cabana onde o mesmo passou a sua infancia. Algumas das suas cancoes e citacoes mais iconicas, tiveram um profundo impacto nos artistas que vieram a seguir como por exemplo os Rolling Stones, que escolheram este nome devido a uma cancao de Muddy. Tal como milhoes de negros, Muddy Waters saiu do sul dos EUA, no final da sua adolescencia em direcao a Chicago. A hostilidade do sul, por comparacao com a recetividade dos Yankees do norte, gerou um exodo que contribuiu para um repentino aumento de populacao em cidades como Chicago e Detroit. Para quem gosta de blues, este pequeno museu e como uma conversa com um historiador cool da nossa idade (ja que a nocao de cool varia com a idade), que com descricoes sucintas, sustenta muito bem o que apresenta, fazendo uso de muitas declaracoes em discurso direto dos grandes do pelotao.

Apos sairmos do museum, procuramos algo para fazer, mas nao encontramos propriamente nada. O s locais que nao estavam fechados, aparentavam estar e as pessoas nao andavam na rua. Ao inicio da tarde, o transito de carros subiu e rocou o mediano, mas o dos peoes manteve-se sempre baixo. Enquanto vagueavamos, encontramos uma loja de musica bem distinta que tinha uma sala de guitarras e baixos que se assemelhava a um freak show de instrumentos. Quase todas antigas e de marcas que eu desconhecia, entretive-me por uns tempos a experimentar estes instrumentos de sons e tatos tao peculiares. No final dessa tarde, apos termos estado mais um par de horas num banco de jardim entre leituras, guitarradas e fugazes sestas, decidimos procurer um sitio para comer e, embora algo descrentes, ouvir blues. Nem a cinco minutos estavamos a andar pelo passeio quando fomos abordados por um simpatico senhor branco, de chapeu e oculos de sol, com uma longa barba em linha com a sua longa camisa para fora das calcas. Convidou-nos a entrar num local estilo sociedade recreativa para ouvirmos, segundo ele 'um guitarrista estupendo e cheio de estilo'. Apercebemo-nos imediatamente que era ele o guitarrista que ia atuar, certificamo-nos que vendiam comida e aceitamos o convite.
O que se seguir foi uma importante experiencia pessoal e musical. Deixo toda a parte ludica e caricata da mesma para descrever num post seguinte, cinjindo-me agora aos elementos de aspeto social decisivos para a compreensao deste local.

Em conversa com alguns dos presents nesta juke joint, percebemos que o condado de Clarskdale desceu de 21.000 pessoas para 17.000 nos ultimos censos. Se enquanto la estive, me tivessem questionado sobre quantas pessoas teria este condado, eu diria entre 3.000 a 4.000 a julgar pelo que vi (nao cheguei a ver uma centena de pessoas, mas a avaliar pelas casas, seria essa a minha previsao). Das 17.000 que la habitam atualmente, 72% sao negros e a maioria trabalha nas planicies do condado que estao repletas de campos de algodao. Estando a economia local baseada na producao e venda de algodao, a minoria branca ainda prevalece como a classe social com mais poder institucional. Segundo nos foi dito, a producao de algodao assenta ainda em processos manuais, tal como acontecia ha 100 anos, implicando praticamente o mesmo numero de pessoas a fazer o mesmo tipo de trabalho. Esta estagnacao professional tem entao uma correlacao direta com a nao evolucao do funcionamento da sociedade local em Clarksdale. A tao estranha inexistencia de pessoas na rua deve-se a tensao social que impesta o ar da vila. Os brancos vivem, essencialmente, em dois sitios, nomeadamente nas mansoes construidas nos campos de algodao dos quais sao proprietarios, ou no centro da vila (neste caso, apenas uma pequena fatia). Quem vive nas mansoes, nao vem ao centro por causa dos ‘niggers’ e quem vive no centro, sai pouco pelo mesmo motivo. A comunidade negra vive em pequenas casas na periferia que se encontram ensanduichadas, pelo centro e pelos campos de algodao. Esta comunidade tambem nao e adepta do centro da cidade, porque e la que vivem os brancos. Este sensivel jogo de equilibrios e entao a causa de sentir-mos que Clarksdale e um local enigmatico, estranho ate, mas nao sem chama!  Por algum motivo, nao parece uma terriola qualquer sem pessoas, mas sim uma terra peculiar que intriga quem a visita.

Mas estas clivagens nao ficam por aqui!

O proprio centro da cidade tem as suas ruas dividas em duas classes: as ruas dos brancos e as ruas dos ‘niggers’. Um negro nao pode abrir um negocio numa das ruas dos brancos e um branco nao vai as ruas dos negros, a nao ser que seja de passagem. Em conversa com uma indignada professora de ginastica de Clarksdale, que estava a servir na juke joint, ela explicou-me que o exodo que esta vila registou na ultima decada, foi, na sua essencia, de jovens que nao so nao compreendem que uma situacao destas se mantenha, como tambem nao compreendem a aceitacao dos cidadaos mais antigos, especialmente os pertencentes a comunidade negra, desta situacao. Como lutar contra um Sistema pode ser inglorio, especialmente se se estiver sozinho nessa luta, optam por abandonar a vila e deixar Clarksdale intacto no que diz respeito ao seu codigo genetico social.
Como nao ha injustica sem uma ponta de ironia, alguem nesta juke joint me confessou entre suave sorrisos que a crise so nao afetou quem vive no Mississipi, ‘Se vivemos de cupoes? O que significa viver sem cupoes?’

Esta e a verdadeira forca por detras dos blues! Embora sendo um povo sorridente e com imenso humor, eles transportam toda a vida uma magoa que tem curzado geracoes e se prepara para curzar mais uma. Eles ardem por dentro e escoam a sua controlada furia atraves de uma guitarra, dentro de um barracao inutilizavel para trabalho, junto de quem fala a mesma lingua. Despacham cigarros, viram garrafas, viajam no tempo e despedem-se para voltar em breve ao local do crime.  Sim, porque na terra onde nasceu, o blues continua a ser o crime!

Nota 1: A professora de ginastica tambem me confidenciou que teve de criar duas turmas segregadas, porque os pais brancos nao queriam que os seus filhos partilhassem a sala com ‘niggers’.

Nota 2: Dias mais tarde li no livro ‘The Sound and the Furry’ de William Faulkner o que poderia ser uma apurada descricao daquilo que vi em Clarksdale:
‘Because no battle is ever won…they are not even fought. The field only reveals to man his own folly and despair, and victory is an illusion of philosophers and fools’

Nota 3: Sabiam que a escravatura so foi abolida da constituicao do Mississipi em 2012? Devido ao mediatismo provocado pelo filme sobre o presidente A.Lincoln, alguem decidiu investigar e percebeu que, neste Estado, ainda nao restava qualquer afirmacao que proiba a escravatura... 

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